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Comentário de Luciana Eastwood Romagnolli*

 

Primeira visada ao teatro sul-mato-grossense

Apresento  aqui  uma  série  de  reflexões  e  questionamentos  sobre  o  teatro praticado  atualmente  no  Mato  Grosso  do  Sul,  a  partir  da  apreciação  dos  espetáculos participantes da Boca de Cena  –  Mostra Sul-Mato-Grossense de Teatro, realizada entre os  dias  24  e  29  de  março  de  2015  em  Campo  Grande,  assim  como  dos  debates  e seminários  promovidos  dentro  da  programação.  Desde  o  início,  esclareço  ser fundamental  que  se  tome  este  texto  pelo  que  ele  é:  um  olhar  de  fora.  Uma  cena  se organiza  pelas  necessidades  e  pulsões  intrínsecas  aos  seus  componentes;  enquanto  o olhar  de  fora  está  sempre  sob  o  risco  de  ser  colonizador  –  ao  alertá-lo,  pretende-se convidar quem lê a se apropriar destas palavras na medida em que fizerem sentido para si, antropofagicamente.
(...)

Uma visão menos textocêntrica do teatro é encontrada também em  Os Olhos que  Tivemos,  do  Núcleo  Teatral  Isadora  (de  Dourados).  Não  que  o  texto  não  ocupe posição  central  no  espetáculo,  mas  pela  íntima  articulação  com  todos  os  demais elementos  cênicos,  a  seu  modo  igualmente  produtores  de  efeitos  de  sentido  e  de presença.  Esse  olhar  global  para  a  cena,  cuidadoso  das  implicações  dramatúrgicas  de cada  camada  composicional  –  luz,  cenário,  objetos,  corpos,  música  etc.  –  cria  uma atmosfera  densa,  em  que  as  partes  somam-se,  dialogam  e  afetam-se  mutuamente, proporcionando  uma  experiência  sensível  mais  completa.  O  texto  original  tem  as qualidades  da  escrita  poética,  lacunar  na  abertura  de  espaços  para  o  espectador,  e  da inter-relação entre o individual e o coletivo dentro de um regime histórico que resgata os sentimentos envolvidos na colonização do país por imigrantes europeus. A história social e a história familiar reconectadas numa chave lúdica, em que mesmo a morte é tratada  com  ternura. A  beleza  dócil  emerge  como  valor  em  um  sistema cênico  regido pelo afeto, por isso mesmo hábil em  estabelecer uma relação de cumplicidade  com o espectador,  ainda  que  a  contraparte  seja  a  renúncia  ao  peso,  à  gravidade,  ao  sentido trágico. Tal cumplicidade se intensifica pela ênfase no eixo extra-ficcional (o da relação palco-plateia), sobretudo pelos olhares expressivos da atriz Roberta Ninin, condensando emoções  direcionadas  a  contaminar  espectador  a  espectador,  tanto  quanto  a configuração  espacial  permita  a  proximidade  da  relação  olho  no  olho.  Nessa  dança sublime  de  corpos,  palavras  e  notas  musicais,  a  suspensão  é  um  signo  essencial. Suspensos  os  barcos  de  papel  que  fazem  do  espaço  cênico  um  espaço  simbólico, suspensos (e sobrepostos) os tempos entre os quais fluem os personagens, suspensos os gestos  de  uma  partitura  coreográfica  que  gera  efeitos  sinestésicos  e  cinestésicos  – afetações  de  presença,  para  além  da  produção  de  sentido.  Corpos  poéticos  que  são corpos-cenários,  em  meio  ao  êxtase  dos  objetos:  barcos  e  violoncelo  vibram. A  cena toda decupada em quadros revela um cuidado formal,  apolíneo, que responde ao caos social com uma composição controlada e, em certo sentido, idealizada. A arte praticada como elevação dos sentidos e sentimentos. Por trás disso, reside uma ética colaborativa de criação, pela qual é conferida autonomia aos elementos da cena e, consequentemente, espaço criativo para os artistas da luz, do espaço, da música. Um trabalho desdobrado por múltiplos olhares mas unificado pela perspectiva da diretora,  modus operandi  a ser estimulado  na  cena  teatral  sul-mato-grossense  justamente  pela  autonomia  criativa  que permite a cada uma das artes implicadas no teatro.

 

*Jornalista e crítica de teatro, convidada pela Secretaria Adjunta de Estado de Cultura, Turismo, Empreendedorismo e Inovação/MS a acompanhar os espetáculos apresentados na Mostra Boca de Cena 2015, realizada em Campo Grande/MS em março de 2015.

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